Um dos fenômenos sociais mais importantes dos últimos anos é a
transformação da cultura e da modernização dos costumes em setor
fundamental do embate político. Durante os anos 1970 e 1980, a cultura
fora um campo hegemônico das esquerdas. Este não é mais o caso. Há de se
perguntar o que ocorreu para encontrarmos atualmente um processo de
politização da cultura por parte, principalmente, de representantes da
direita.
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Poderíamos dizer que a direita do espectro político teria
compreendido que a população, em especial as classes populares, é
naturalmente conservadora nos costumes, pois avessa a questões como
aborto, casamento homossexual e políticas de discriminação positiva. Da
mesma maneira, ela seria conservadora em cultura, pois mais sensível ao
peso dos valores religiosos na definição de nossas identidades e de
nossos “valores ocidentais”. É possível, porém, que o movimento em
questão seja de outra natureza.
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Em um astuto livro chamado O Que Há de Errado com o Kansas?,
o ensaísta norte-americano Tom Frank lembra como o pensamento
conservador soube se aproveitar do sentimento de abandono social das
classes populares. Frank serve-se do Kansas para perguntar: como um dos
estados politicamente mais combativos dos EUA nas primeiras décadas do
século XX tornou-se um bastião conservador? Sua resposta é: sentindo-se
abandonado pelas elites intelectuais esquerdistas cosmopolitas que, à
sua maneira, não foram completamente prejudicadas pelos desmontes
neoliberais, as classe populares deixaram que um conflito de classe se
transformasse em um conflito cultural.
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Em vez de se voltarem contra os agentes econômicos
responsáveis por tais desmontes, elas se voltaram contra o modo de vida
que representaria as elites liberais. Neste deslocamento, os
responsáveis pelo empobrecimento dos setores mais vulneráveis da
população apareceram como os portadores dos “verdadeiros valores de
nosso povo”. Desta forma, a direita pode falar menos sobre economia e
mais sobre hábitos e cultura. Ela pode, inclusive, tentar
instrumentalizar o anti-intelectualismo, como vimos nas reações caninas
contra a Universidade de São Paulo e seus departamentos de Ciências
Humanas à ocasião dos conflitos com a Polícia Militar.
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Mesmo a discussão europeia sobre a imigração deve ser lida nesta
chave. Qualquer pessoa séria sabe que a discussão sobre imigração nada
tem a ver com economia. Quem quebrou a Europa não foram os imigrantes
pobres que servem de mão de obra espoliada e desprovida de direitos
trabalhistas. Na verdade, quem a quebrou foi o sistema financeiro e seus
executivos “brancos e de olhos azuis”. A discussão sobre imigração é um
problema estritamente cultural. Maneira de deslocar conflitos de classe
para um plano cultural.
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Este é um fenômeno parecido ao ocorrido em países como a Tunísia após
a Primavera Árabe. Feita por jovens esquerdistas diplomados e filhos da
classe média tunisiana, a revolução permitiu a vitória de um partido
islâmico (Ennahda) porque, entre outras coisas, eles souberam captar a
lassidão das classes populares em relação à classe média europeizada de
cidades como Túnis e Sfax. Os islâmicos souberam dizer: “O desprezo a
que vocês foram vítimas durante todos esses anos é, no fundo, desprezo
aos valores que vocês representam, desprezo ao nosso modo de vida de
alta retidão moral contra a lassidão dos mais ricos”. Mudam-se os
agentes, mas a estrutura do discurso é a mesma.
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Contra isso, a esquerda não deve temer entrar no
embate cultural e dos costumes. Devemos quebrar as tentativas de nos
fazer acreditar que as classes populares são naturalmente conservadoras e
mostrar como a cultura virou uma forma de o capitalismo absorver o
descontentamento com o próprio capitalismo. A melhor maneira é mostrar
como o modo de vida baseado na modernização dos costumes e da cultura
tem forte capacidade de acolher as demandas populares.
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Por exemplo, boa parte dos absurdos falados contra o casamento de
homossexuais vem do medo de desagregação das famílias em ambientes onde
elas aparecem como núcleos importantes de defesa social. Talvez seja o
caso de lembrar que nenhum estudo demonstra que famílias homoparentais
são mais problemáticas do que famílias tradicionais. Famílias
tradicionais também são bons núcleos produtores de neuroses. Ou seja, os
impasses e dificuldades da família continuarão, com ou sem famílias
homoparentais. Mostrar a fragilidade de nossos “valores” e “formas de
vida” é uma maneira de quebrar a fixação a um estado de coisas que não
entrega o que promete.
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