É o cúmulo do absurdo que o Parlamento Europeu, que
reúne representantes do povo, se preste a votar uma resolução contra a
Argentina, em defesa dos interesses de uma multinacional
Por Eduardo Febbro, de Paris [20.04.2012 14h00]
Publicado por Carta Maior
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Os impérios do Ocidente estão nervosos. A decisão da presidenta
argentina de renacionalizar os recursos petrolíferos do país reativou
nos europeus o ímpeto da ameaça e da desqualificação, assim como a
política dos valores em escala variável. O santo mercado tem
prerrogativas acima de qualquer oposição. Além da agressiva campanha que
se desatou na Espanha em defesa de uma companhia que, na realidade,
sequer é espanhola, a União Europeia somou seus votos em respaldo à
multinacional. A inesgotável e esgotadora responsável pela diplomacia da
UE, Catherine Ashton, advertiu que a decisão argentina “era um muito
mau sinal” para os investidores estrangeiros. Por sua vez, o presidente
da Comissão Europeia José Miguel Barroso, disse que estava muito
“decepcionado” pela medida de Buenos Aires.
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O vice-presidente da Comissão Europeia, o italiano Antonio Tajani,
sacou um leque de ameaças: "Nossos serviços jurídicos estudam, de acordo
com a Espanha, as medidas a adotar. Não se exclui nenhuma opção",
disse. Cúmulo do absurdo, o Parlamento Europeu de Estrasburgo, que reúne
os representantes do povo, se presta a votar uma resolução contra a
Argentina.
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Um traço mais da confusão que leva a uma instituição política,
surgida do voto popular, a clamar pelos interesses de uma multinacional.
O Parlamento Europeu nada fez para denunciar as empresas do Velho
Continente que, em nome da segurança jurídica, investiam e investem seus
capitais em países amordaçados por regimes assassinos que, ao mesmo
tempo que ofereciam segurança jurídica aos investidores, jogavam seus
povos no poço da repressão, da corrupção, do assassinato das liberdades e
da pobreza. A defesa dos interesses nacionais contra os do mercado é
algo que ficou na garganta da muito liberal União Europeia.
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A UE revisitou seus “valores” recentemente, no ano passado: em troca
da ajuda aos países árabes, a UE pede eleições democráticas, luta contra
a corrupção, abertura comercial e proteção dos investimentos. Antes,
não lhe importava que um punhado de ditadores e autocratas esmagassem
seus povos enquanto a abertura comercial e a proteção dos investimentos
estivessem garantidas. A fonte da democracia fechava os olhos enquanto
suas empresas pudessem operar a seu bel-prazer.
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A mesma dupla linguagem, duplo valor, envolve a escandalosa política
das subvenções agrícolas da UE. Instrumento de destruição dos mercados,
perverso mecanismo de falsificação dos preços internacionais, as
subvenções se aplicam em apoio a uma corporação, a dos agricultores.
Pouco importa que o planeta pague pela proteção de um setor. O porta-voz
do Comissário Europeu para o comércio, John Clancy, disse ao canal
EuroNews que a decisão da presidenta “destrói a estabilidade que os
investidores procuram”.
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Tocar numa empresa europeia é sinônimo de uma declaração de guerra ou
de pisotear a identidade. Hoje reúnem o Parlamento Europeu, em outras
épocas talvez tivessem enviado a marinha para bloquear o porto de Buenos
Aires como ocorreu em 1834, quando Juan Manuel de Rosas se negou a que
os súditos franceses ficassem isentos de suas obrigações militares e
decidiu impor um gravame de 25% às mercadorias que chegavam do exterior
com destino a Buenos Aires.
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A imprensa europeia e os analistas propagam um cúmulo alucinante de
omissões e mentiras. Frases como “nacionalismo petroleiro” ou “tentação
intervencionista” do Estado argentino, se tornaram uma consigna repetida
em todas as colunas. Como se qualificaria então a defesa de uma empresa
por parte das instituições políticas da União? Euro-nacionalismo de
mercado, escudo político para os interesses privados, etnocentrismo
liberal?
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E, assim mesmo, o discurso do nacional contra o global, do local
contra o multilateral não é uma exclusividade peronista. O próprio
presidente francês, Nicolas Sarkozy, o reativou com um vigoroso discurso
durante a campanha eleitoral para as eleições presidenciais do dia 22
de abril e seis de maio (primeiro e segundo turno). O presidente
candidato propôs renegociar o acordo de Schengen que regula e garante a
livre circulação das pessoas e revisar os acordos comerciais que ligam
os 27 países membros da União Europeia.
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No primeiro caso e por razões claramente eleitorais, Sarkozy
considera que os acordos de Schengen não permitem regular para baixo os
fluxos migratórios. No segundo, que tem dois capítulos, se trata
primeiro de instaurar na Europa um mecanismo similar ao Buy Act American
com um “Buy European Act” a fim de que as empresas que produzem na
Europa obtenham dinheiro público em caso de licitações. Em segundo
lugar, Sarkozy exigiu à Comissão Europeia que imponha um critério de
reciprocidade a seus sócios comerciais. Sarkozy disse em seu discurso:
“A Europa não pode ser a única região do mundo que não se defende. (…).
Não podemos ser vítimas dos países mais fortes do mundo”.
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Isto pode ter vigência também para o resto do planeta. O patriotismo
europeu bem vale o suposto “patriotismo petroleiro”. Ali onde se
encontra em desvantagem, a UE impõe seus limites, ativa seu lobby
ou bota suas instituições democráticas a atuar como polícia
moralizadora. O livre comércio e o direito monárquico das empresas sobre
os recursos naturais, a vida humana e as geografias não é o último
estado da humanidade. Há vida depois de tudo, antes e depois da Repsol.
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Todo o aparato jurídico da UE se colocou em marcha para sancionar isso que o jornal espanhol El País
chama “o vírus expropriador” de Cristina Fernández de Kirchner. O
“vírus” do mercado global começa a fazer seu trabalho. A UE está
ofendida. Tocaram em seu filho pródigo, a liberdade de brincar com o
destino dos povos em benefício de suas empresas. Uma guerra moderna onde
o gigante vai sancionar um sócio que deixou de apostar em um tabuleiro
onde só ganham os capitais que se volatilizam como os valores
democráticos e de justiça que defenda a sacrossanta União. Seu hino à
liberdade é geométrico. Enquanto a grana encha seus bancos, o sangue
pode correr, como na Tunísia, Líbia, Egito e tantas outras ditaduras
africanas que proporcionam o petróleo para acender as luzes de um século
cujo destino está em mãos privadas e suas instituições às ordens das
entidades financeiras e das empresas.
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Tradução: Libório Junior
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