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quinta-feira, 26 de abril de 2012

Galdino Pataxó: 15 anos depois de morto, luta de seu povo continua


Itabuna (BA) - Ao invés do mármore frio, os túmulos dos cemitérios da Terra Indígena Caramuru-Catarina Paraguassu, sul da Bahia, se misturam à mata. Quanto mais velho é o morto, mais a vegetação se espraia sobre a terra. Longe de ser sinal de abandono, para o povo Pataxó Hã-Hã-Hãe é o cumprimento da profecia do ancião Samado Bispo dos Santos, uma das tantas lideranças que empenharam a própria vida na retomada completa do território indígena: sirvo de adubo para essa terra, mas daqui não saio. Num desses lugares sagrados, onde os índios se misturam ao seu bem mais precioso, está Galdino, morto há 15 ano ao ser queimado por cinco jovens de classe média alta num ponto de ônibus da capital do país.

 Galdino é índio Pataxó Hã-Hã-Hãe. De forma tímida, alguns jornais lembraram os 15 anos da morte do indígena, mas sem o atrelar aos episódios recentes no sul da Bahia. O que era para ser uma data simbólica de renovação do compromisso do Estado com os povos indígenas, tornou-se apenas mais uma praça no local em que o índio foi martirizado. Nem mesmo a terra pela qual Galdino lutava em Brasília foi garantida pelas autoridades. Porém, 15 anos depois do assassinato do indígena, estando impunes os que o mataram e invadiram suas terras, o povo Pataxó Hã-Hã-Hãe decidiu por reocupar cada palmo dos 54,105 mil hectares da Terra Indígena Caramuru-Catarina Paraguassu. Desde janeiro, o número de áreas retomadas passam de 70. Como acontece há quase um século, a caminhada rumo à plenitude do território tradicional é marcada pela violência e criminalização.
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Tropa de Elite
Na entrada do município de Pau Brasil, um grupo da tropa de elite da Polícia Militar baiana, fortemente armado, revista veículos e indaga os ocupantes. Desde o início das retomadas indígenas, Pau Brasil, Itajú do Colônia e Camacan, cidades que abrangem a terra indígena, foram invadidas por pistoleiros, na maior parte das vezes tratados como seguranças das fazendas. São estes jagunços, com armas de grosso calibre, conforme revelou matéria do jornal "Folha de S. Paulo" na edição do dia 21 de abril, que vão para o confronto com os indígenas. Na mesma reportagem, fazendeiros afirmam que pretendiam retirar os indígenas da fazenda para não dar a entender ao Supremo Tribunal Federal (STF), que vota a nulidade dos títulos dos invasores, que a questão já está resolvida. Desde a primeira retomada dos Pataxó Hã-Hã-Hãe, estes ‘seguranças’ já assassinaram em emboscadas mais de 30 lideranças do povo pataxó nos últimos anos. Como ainda restam áreas não retomadas, os pistoleiros contratados pelos fazendeiros ficam pela cidade, ameaçando moradores, ou buscando se entrincheirar nas fazendas em posse dos invasores.
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Se por um lado a pistolagem faz parte do cotidiano dos indígenas, notícias plantadas na imprensa baiana, sobretudo pela Rede Globo, reverberam declarações de líderes de sindicatos rurais dando conta de que os Pataxó Hã-Hã-Hãe são invasores de terras, assassinos e uma ameaça para a vida social e econômica da região. Os indígenas nunca recebem espaço equânime e informações oficiais da polícia que desconstroem as acusações são omitidas. Em conversa informal, a delegada da Polícia Federal de Ilhéus Denise Dias afirma que os policiais nunca comprovaram a existência de reféns nas áreas retomadas pelos indígenas e tampouco as denúncias de sequestros, desaparecimentos e assassinatos de fazendeiros ou trabalhadores rurais. No entanto, é taxativa ao dizer que os dois lados estão armados.
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Lideranças Mortas
“Os índios não mataram nenhum fazendeiro e nenhum pistoleiro. Em todos esses anos de luta, foram mais de 30 lideranças nossas assassinadas. Fizemos o trabalho sem matar ninguém, porque fazemos pelo sangue derramado do nosso povo. Totalmente diferente do que eles contam”, justifica o cacique Nailton Muniz Pataxó Hã-Hã-Hãe. O povo possui mais de um cacique e Nailton é um dos mais antigos. Ele lembra do massacre sofrido por seu povo para justificar a recente onda de retomadas: “Sentimos também o desejo de políticos nas nossas terras e isso acumulou em nós a preocupação de nunca mais a termos. Fora o projeto de uma hidrelétrica no rio Pardo. Nós sabemos que se for realizada essa construção, uma parte importante da nossa terra se perderá”, pontua. Não se esquece de Galdino e de outros mortos na luta pela terra: “Completa agora 15 anos da morte de Galdino. Queria ter aqui a alegria de estar em paz em nosso território. Queria ver os assassinos do Galdino e de outras lideranças presos. Queríamos prender o fazendeiro que castrou o índio Djalma, que arrancou suas unhas, arrancou os dentes, o couro cabeludo, que o fez engolir os testículos e um quilo de sal até morrer”.
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Cacique Ilza Rodrigues da Silva salienta que as ocupações foram pacíficas, mas a postura dos jornais e das elites agrária e política é de criminalizá-los. A Polícia Federal acompanha de perto as ações, assim como a Fundação Nacional do Índio (Funai) está sempre nas retomadas. A comunidade indígena, conforme Ilza, é bem vista pela população de Pau Brasil, um dos rebolos do conflito, porque sabe que os indígenas são importantes para a cidade. “Acusam os índios de praticar mortes, como a de Ana Maria que foi pelas mãos dos pistoleiros. Queremos que investiguem. Os fazendeiros dizem que são seguranças: eu penso que segurança é a polícia, o que tem ali são pistoleiros. Não queremos tirar a vida de ninguém, não temos esse direito. O direito que nós temos é sobre a terra. À vida todos têm direito, assim como nós índios”, diz.
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A situação de ocupação do território pelos indígenas nunca é fixa. Algumas fazendas retomadas foram recuperadas pelos pistoleiros, sobretudo na região do rio Pardo. O que é certo é que não há mais fazendeiros, trabalhadores ou gado nas áreas. Conforme o cacique Gerson de Souza Melo, dos 54 mil hectares, ao menos 50 mil estão na posse dos indígenas. Por isso os conflitos são permanentes, caso do indígena baleado na perna enquanto pescava numa das fazendas, do incêndio no pasto em área retomada pelos indígenas e de um caminhão de fazendeiro também incendiado.
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Memória e resistência
Como num eclipse alinhando a terra, o sol e a lua, outras datas se somam aos 15 anos da morte de Galdino e representam a memória usada pelos indígenas para, desde 1º de janeiro deste ano, tocarem uma série de retomadas que garantiram a ocupação de quase a totalidade das áreas invadidas por fazendeiros desde a década de 1940. Tais invasões foram facilitadas pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que passou recibos de arrendamentos de lotes da terra indígena aos latifundiários, mesmo com ela demarcada e já da União. Duas décadas depois, nos anos 1960, a ocupação irregular motivou o então governador baiano Antônio Carlos Magalhães a emitir títulos de posse ilegais aos ‘proprietários’ para ‘legalizar’ a situação dos invasores. A justificativa era de que naquela região os índios estavam extintos. São esses títulos que estão em votação pelos ministros do STF, que decidirão se eles são válidos ou não. O processo corre desde 1982, ou seja, há 30 anos.
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No último dia 20 de abril, os Pataxó Hã-Hã-Hãe trouxeram à memória do povo os 20 anos da morte da índia Barretá, retirada da condição de isolamento pela equipe de atração de José Brasileiro, homem do SPI no Posto Indígena Caramuru que coordenou o arrendamento da terra indígena. Barretá falava a língua Pataxó Hã-Hã-Hãe e antes de morrer, já com idade bem avançada, deixou uma cartilha oral, subsídio usado nas tentativas de se recuperar a fala do povo. A índia foi retirada da mata à força ao lado de outros índios, entre eles Onhak, Zé Índio, Maria Butx e Txitxiá. Juntos viviam numa aldeia chamada Pedra do Couro Danta, na base de um grande rochedo. A área estava dentro das 50 léguas em quadra (mais de 200 mil hectares) proposta inicialmente pelos trabalhos fundiários de 1926, que a demarcação de 1936 reduziu para 54 mil hectares e deixou de fora a aldeia. A violência na região, portanto, atende aos casos mais clássicos de massacres cometidos contra as populações indígenas nas Américas.
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Rancho Queimado
O cacique Nailton, como todos na Terra Indígena Caramuru-Paraguassu, desde pequenos convivem sob esse estigma. Nailton nasceu numa aldeia chamada Rancho Queimado, que tem esse nome pelo fato de que no lugar foi construído um rancho para os marcadores delimitarem a terra indígena, em 1926. Os fazendeiros atearam fogo na moradia e daí surge a denominação da aldeia. Apenas dez anos depois os trabalhos foram retomados. Iline Brasileiro da Silva lembra o período posterior à demarcação. Durante a década de 1940 ele viveu no posto indígena ao lado de seu pai, José Brasileiro. “O SPI mandava arrendar as terras. Foram muitas mortes mesmo. Todo fazendeiro era arrendatário e os que não eram meu pai expulsava”, lembra Iline numa esquina pacata de Itaju do Colônia.
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Era um tempo, de acordo com depoimentos deixados por Barretá, em que os indígenas chamavam seus algozes, fossem da SPI ou fazendeiros, de papai. “Ela dizia que os castigavam amarrando-os na árvore (que está na aldeia até hoje) sob o sol, com espancamentos e davam sal para eles comerem. Nesse sofrimento, os índios choravam e chamavam: papai, papai, papai. Tudo isso justifica retomarmos o que é nosso e foi roubado com muito sofrimento do nosso povo”, ataca o cacique Reginaldo Pataxó Hã-Hã-Hãe.
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Ele aponta a aldeia Barretá como o marco zero da posse dos indígenas sobre o território, pois ali foi montado o Posto Indígena Caramuru, foram feitas as atrações e dali as medições da terra partiram. Ele explica que o objetivo das retomadas não é só para garantir a posse da terra, mas também as riquezas naturais que existem já reduzidas pela ação depredatória da pecuária. “Nos preocupamos em reocupar a área até que o STF julgue. Assim podemos garantir que as terras estejam em nossas mãos. Queremos garantir aos nossos filhos a posse da terra e a recuperação das riquezas naturais”, define. Reginaldo salienta, no entanto, que as retomadas trouxeram ameaças e hoje não se pode caminhar pelos municípios do entorno.
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“Esses dias saiu matéria de demissões no comércio e usaram um lugar que já estava fechado há muitos e muitos anos. Dados do IBGE de 2010 mostram que os índices sempre foram baixos em Itjau do Colônia, por exemplo. O município vive de receita do governo federal e não tem nada que cria receita. Há sim um latifúndio criador de gado; esses bois não ficam no município e tampouco trazem recursos. Com essas terras em nossas mãos, vamos gerar renda para o município, porque defendemos a diversidade e a não exploração capitalista das terras. Com fé em Tupã vamos vencer”, ressalta.
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Depoimento: ameaças de morte e medo
Cacique Gerson Pataxó Hã-Hã-Hãe: 
“Eu já fui sequestrado por fazendeiro, preso duas vezes, saí em porta mala de fusca da cidade. Depois que me elegi vereador, o carro da Funai que me levava para as sessões e buscava. Foi atacado e ficou crivado de tiros. Tem um pistoleiro chamado de Remilson e mandou recado dizendo que só sai da área quando estourar minha cabeça. Já me caçaram na estrada. Corro risco de morte. Isso já vem de muitos anos. Eu estou com medo de morrer”.
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“A violência aumentou. Não deixam nem o carro pipa entrar na área para trazer água para a comunidade. Estamos com 1.200 alunos sem estudar, porque não podem sair da terra indígena. Esperamos que o julgamento saia logo. A terra da gente foi demarcada em 1936. Essa ação que está no supremo é para julgar nulidade de título, não a demarcação. Então, como é que o STF vai julgar como legítimo os títulos se a terra é da União? Como o governo da Bahia dá título de uma terra que não é dele? Pedimos aos ministros que pensem nisso”.
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As declarações são ainda mais contundentes quando se observa o tempo levado para a decisão da Justiça. No processo do STF está claro: dos 396 réus do processo, 336 já foram indenizados. A maioria não possui títulos de posse e já foram até indenizados pela Funai. Além disso, quatro perícias foram feitas e que comprovaram a ocupação nos 54,105 mil hectares. “Numa das fazendas do Durval Santana que ainda não retomamos está um dos marcos”, se indigna Gerson. O sentimento se expande aos outros caciques. Caso do jovem Josivaldo Reis dos Santos.
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“Aqui queremos a terra. Índio não quer casa bonita, sede de fazenda. Queremos a terra, que é nossa. Somos um povo de raízes e aqui é nossa casa. Perto dos dez anos de idade começo a lembrar de muita gente que morreu. Samado, meu avô, foi preso pelos homens de Geno (primeiro fazendeiro de quem os indígenas retomaram terras) e trancado dentro de um banheiro cheio de imundices. Isso é considerado tortura hoje em dia. Os mais velhos correram longas datas pelo mato para fugir de pistoleiros”, afirma Josivaldo.
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